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“Nem toda primeira-dama exerce o primeiro-damismo”

Lu Belin, de AzMina | São Paulo

O Brasil não elegeu só um presidente, mas uma primeira-dama também. A historiadora Dayanny Rodrigues explica o que isso significa e fala sobre as brechas encontradas pelas mulheres para atuar na política

14 de nov. de 229 min de leitura
14 de nov. de 229 min de leitura

No dia 30 de outubro, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, além de um novo presidente, ganhamos uma nova primeira-dama. Socióloga de formação e militante petista desde 1985, Rosângela Silva, ou Janja, já avisou que não será “bela, recatada e do lar”, nem se concentrará em ações voluntárias, conforme a tradição de sua nova posição. 

Durante a campanha de Lula à presidência, a nova primeira-dama mostrou interesse na área dos direitos das mulheres, especialmente no combate à fome. Em abril deste ano, em um encontro de Lula com mulheres da Brasilândia, periferia de São Paulo, afirmou que “a cara da fome no Brasil é a cara das mulheres”. Experiente na área de desenvolvimento sustentável, Janja defende novas práticas produtivas como caminho para a segurança alimentar.

A paranaense assume um papel de prestígio, mas sem salário nem definição de funções oficiais. Para entender o lugar das primeiras-damas nos governos masculinos, conversamos com a historiadora Dayanny Deise Leite Rodrigues. Ela mergulhou no assunto em 2012, quando a Paraíba elegeu 39 prefeitas, a maioria de ex-primeiras-damas que se projetaram atuando em projetos de saúde, educação e assistência social. 

No doutorado, defendido em 2021 pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ela ajudou a cunhar o conceito historiográfico de primeiro-damismo. Nessa entrevista, Dayanny fala da centralidade das esposas de presidentes no debate público, como elas são envolvidas nas campanhas e nos governos dos companheiros e até onde vai sua atuação.

AzMina: O que é isso que você chama de “primeiro-damismo”?

Dayanny Rodrigues: O primeiro-damismo é um fenômeno político caracterizado por um conjunto de práticas exercidas por esposas de governantes em exercício no Poder Executivo. Pode ser apontado como estratégia, quando as primeiras-damas buscam legitimar a ideologia ou projeto político do esposo, mas também como tática, ao burlarem o plano político/ideológico proposto por quem está à frente do Estado. Esse fenômeno foi constituído e perpetuado sob o signo das hierarquias de gênero que marcaram a sociedade patriarcal característica da sociedade brasileira. 

AZ: Então, nem toda primeira-dama pratica o primeiro-damismo?

DR: Exatamente. Primeira-dama é a esposa de alguém que está ocupando um cargo no Executivo. As que não praticam o primeiro-damismo ficam como acessórias ao marido, como foi o caso de Marcela Temer, que não desenvolveu nenhum projeto nem mesmo no assistencialismo. Não é que ela tenha sido incapaz, mas o projeto político de Temer não atribuiu, não delegou essa função a Marcela. Era a bonita, a jovem, a mãe. 

"A primeira-dama aparece como esse braço estratégico para abraçar algo que o Estado não sabe como tocar."

AZ: Desde quando existe esse fenômeno?

DR: Darcy Vargas foi o marco inicial do primeiro-damismo no Brasil, a partir da década de 30. No entre-guerras, com o país vivenciando uma conjuntura de golpe, ela cria a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que nasce para dar suporte às famílias dos soldados enviados para a guerra. Suas famílias ficaram aqui, então, foram assistidas e acolhidas pelo Estado.

A historiadora Dayanny Deise Leite Rodrigues, que ajudou a cunhar o conceito historiográfico de primeiro-damismo. Arte: AzMina
A historiadora Dayanny Deise Leite Rodrigues, que ajudou a cunhar o conceito historiográfico de primeiro-damismo. Arte: AzMina

O social é um problema que está em transição na década de 40 — deixa de ser um problema de polícia para se tornar um problema de política. Mas a assistência ainda era uma noção baseada na caridade. Os cursos de Serviço Social no Brasil nascem nessa época, inclusive. Então, o Estado precisa criar um mecanismo que atenda uma parcela marginalizada da população, e a primeira-dama aparece como esse braço estratégico para abraçar algo que o Estado não sabe como tocar. 

AZ: E como isso se desenvolve a partir da Darcy Vargas? 

DR: Além da figura de Darcy, temos Sarah Kubitschek, que não foi acessório de Juscelino em momento nenhum, mas um braço do Estado. Ela implanta em Minas Gerais os hospitais volantes, os ônibus itinerantes que fazem atendimento médico na rua, e, quando JK ganha a eleição para presidente, ela cria um grupo chamado “pioneiras sociais”. Ela diz que não quer ocupar a LBA, recusa essa posição e propõe outro movimento.

Se Darcy teve sua atuação muito restrita ao social, à caridade, à fome, Sarah expande para a questão da Saúde, e principalmente da saúde da mulher. Ela tem uma mãe que falece de câncer, então, cria um hospital no Rio de Janeiro para atender mulheres e fazer exames como os de colo do útero, que na década de 50 não eram tão fáceis de encontrar. Ou seja, ela traz a preocupação com a saúde da mulher para dentro deste campo de atuação do primeiro-damismo. 

AZ: Que aspectos contribuem para essas mudanças no primeiro-damismo? 

DR: Essa mudança vem desde o final da ditadura. As mulheres conquistam o direito ao voto no Brasil em 1932, e tivemos uma ditadura em seguida, até 45. Darcy não tinha que falar para as mulheres. Ela tinha que falar para os oprimidos, os pobres, os descamisados, os de rua, os não-cidadãos. Depois tivemos outra ditadura em 64, que vai até 85. Mais uma vez, não tinha voto, então elas não falavam diretamente para as mulheres. Com a redemocratização isso começa a mudar. De 86 pra cá, ainda é muito pouco o percentual de atuação das mulheres na política, embora venha aumentando aos poucos. Temos a lei de cotas, que assegura o percentual de candidatura, e isso reflete na mudança de postura dessas primeiras-damas.

Agora temos a LOAS, a Lei Orgânica de Assistência Social. Ou seja, assistência social agora é política pública de seguridade social, não é mais assistencialismo. Essas primeiras damas não podem mais ficar fazendo aquele mesmo movimento de ação assistencialista. Elas agora têm o público para dialogar, somos mais de 50% do eleitorado.

Quem começa a fazer esse movimento é Ruth Cardoso, que rompe com o primeiro-damismo assistencialista. Se observarmos as políticas de inclusão social a partir dos governos FHC e Lula, muitos têm como mentora intelectual a Ruth Cardoso, antropóloga, considerada a mãe da antropologia urbana no Brasil, professora da USP, mas que não tem tanta visibilidade porque era primeira-dama. 

AZ: As mulheres abraçaram a assistência por encontrarem uma  brecha para participar do governo, ou foi uma  escolha?

DR: Foi uma porta encontrada. Nós, mulheres, sempre tivemos nossa participação restrita nos espaços públicos, e isso influencia as atitudes. Se você analisa os votos femininos na Constituição de 1988, elas votaram emparelhadas, independentemente de serem de direita e de esquerda. Havia divergências, como a pauta do aborto, mas houve muito consenso entre as mulheres. E aí é que falo de tática. As mulheres usam de tática para se infiltrar em espaços onde, pela lógica tradicional, não conseguiram se inserir. São as brechas encontradas por essas mulheres para construir experiências de protagonismo. 

AZ: Neste sentido, desde o início Michelle Bolsonaro levantou a bandeira da defesa das pessoas com deficiência. Ela conseguiu desenvolver essa pauta ao longo do mandato de Jair Bolsonaro? 

DR: Ela anuncia, no próprio ato de posse, que pretende trabalhar por isso, mas acredito que a função de Michelle Bolsonaro no Governo e na campanha de Jair Bolsonaro vem sendo diferente. Ela é uma apaziguadora. O movimento é sempre o mesmo: o presidente fala alguma bobagem ou agride uma mulher verbalmente. Um exemplo é o episódio em que fala que a filha Laura foi uma “fraquejada” e Michelle aparece em seguida para amenizar a situação, dizer “é o jeito dele”, e testemunhar que ele é  um marido excelente, um pai excelente. Estrategicamente, esta foi a função de Michelle na campanha e no governo de Bolsonaro.

A socióloga e militante de esquerda Rosângela "Janja" da Silva em um comício de campanha do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 24 de setembro. Janja casou este ano com Lula e foi peça-chave na campanha que o levou à presidência pela terceira vez em 30 de outubro de 2022. Foto: Caio Guatelli/AFP
A socióloga e militante de esquerda Rosângela "Janja" da Silva em um comício de campanha do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 24 de setembro. Janja casou este ano com Lula e foi peça-chave na campanha que o levou à presidência pela terceira vez em 30 de outubro de 2022. Foto: Caio Guatelli/AFP

AZ: É comum utilizar as esposas como cabo eleitoral?

DR: Outra primeira-dama fez muito isso e não se fala tanto sobre ela. É Carmela Dutra, esposa de Eurico Gaspar Dutra, conhecida como Santinha. Ela era apontada como uma das grandes responsáveis por fazer com que Dutra fechasse os cassinos e colocasse tanto esses estabelecimentos quanto o Partido Comunista na ilegalidade. Ela era uma anticomunista declarada, com um viés neonazista escancarado. No Rio de Janeiro tinha um comitê chamado “Santinha com as mulheres”. A historiografia mostra que quando Dutra era ministro do Vargas, Santinha interferia até no fardamento das enfermeiras da FAB (Força Aérea Brasileira). Tinha uma influência tremenda antes, na campanha, e depois, no governo dele, de 1946 a 1951.

Também não podemos deixar de mencionar a atuação de Marisa Letícia, ex-primeira-dama, sempre atuante ao lado de Lula, em todas as suas campanhas. Marisa esteve presente desde a coleta de assinaturas para a criação do Partido dos Trabalhadores, até o governo de Lula. Assumiu uma posição de liderança em todas as campanhas, principalmente em 2002. Primeira-dama não é função pública, não é cargo, mas Marisa tinha uma sala interligada à dele no Alvorada E nunca aconteceu uma reunião ministerial sem que Marisa estivesse presente. As pessoas tendem a dizer que o binômio público-privado não existe mais, mas ele existe. Muitas vezes, essa influência no espaço privado repercute no público, nesta lógica de deixar as mulheres nos bastidores.   

AZ: Você acha que a participação das primeiras damas será mais ativa no futuro, não só na escolha de campos de atuação, mas de uma participação mais ampla no governo dos maridos?

DR: As emergências históricas deixam cada vez mais explícito que essas mulheres não podem continuar atrás dos holofotes. A atuação dessas mulheres sempre existiu, mas nos bastidores. Às vezes, isso era até literal. Vargas era um homem fisicamente pequeno. Para não ficar maior do que ele nas imagens, Darcy precisava ficar dois passos atrás na hora de posar para a foto. Hoje, a gente discute e combate racismo, homofobia, discriminação, luta por direitos humanos, É claro que a pauta conservadora é muito forte, mas todas essas emergências vêm gritar, ecoar no interior desse mundo masculinizado que é a política, que não tem como deixar mais as mulheres por trás dos holofotes. Elas nunca estiveram ali porque não quiseram protagonismo. Elas tentaram, de diversas maneiras, ocupar os papéis de frente, e algumas conseguiram.

Esta matéria foi originalmente publicada neste link de AzMina.

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